20 dez, 2020

Por Angela Vega

Para um exame de consciência

Há tempos, venho observando que, ao terminar meus workshops, aulas ou ao final de uma reunião, restam uma quantidade de papéis, copos de plástico para água ou copinhos de café sobre as mesas. Às vezes, até as notas registradas por alguns.

E, nesses momentos, eu me pergunto o que leva as pessoas a abandonarem seu “lixo”? Quais serão os pensamentos e as crenças que sustentam esse comportamento?

Minha suposição para o fato, traz o contexto em que a sociedade brasileira foi criada. Uma sociedade que se estabeleceu em meio à escravatura, na qual, a sinhazinha ou sinhozinho possuíam (do verbo ter) mucamas e serviçais para lhe atender e cuidar de seu bem-estar.

Passei a chamar esse comportamento de “mentalidade escravocrata”. E, se me expandir um pouco mais, percebo que, no tratamento de pessoas que prestam serviços, também essas atitudes se fazem presentes.

Foi emblemático para mim observar que, na academia que eu frequentava, nas aulas de spinning, algumas pessoas, em vez de encherem suas próprias garrafinhas de água, entregavam-nas a uma senhora da limpeza para que ela as enchesse. Aguadeiros modernos.

O artigo que me despertou para essas observações foi escrito por Roberto Damatta, publicado pela CNI / SENAI, a respeito da imagem do engenheiro na sociedade brasileira. Em uma parte do texto, diz o autor:

“Mas, mesmo abolida, a escravidão está na raiz do sistema social brasileiro. Foi ela quem sustentou esse personalismo sem o qual não se entende a operação de nosso sistema político. Foi ela também quem sustentou a hierarquia que até hoje, doce ou autoritariamente, por favor ou ordem, comanda quem vai “pegar o copo d’àgua”, “fazer o cafezinho”, “servir à mesa”, “ir ao banco” e “arrumar o quarto”. Impossível não citar, neste contexto, uma observação de Luccock quando visitava uma casa brasileira e surpreendia, com seu olhar igualitário de inglês, o comportamento de uma dama carioca sentada numa esteira e rodeada e suas escravas: Junto e ao alcance da mão estava pousado um canjirão d’água. Em certo momento, interrompeu a conversa para gritar por uma outra escrava que estava em local diferente da casa. Quando a negra entrou no quarto, a senhora lhe disse: ‘Dê-me o canjirão’. Assim fez ela, sua senhora bebeu e devolveu-lho; a escrava recolocou o vaso onde estava e retirou-se sem que parecesse ter dado pela estranheza da ordem, estando talvez a repetir o que já fizera milhares de vezes antes. (LUCCOCK, 1820, p. 48). É óbvio que a “estranheza” exprime o etnocentrismo de caráter igualitário do observador, abismado com o que percebia como inércia ou preguiça da dona da casa, incapaz de mexer-se para pegar a botija d’água situada ao alcance de sua mão.”

E nas praças de alimentação dos shoppings? Às vezes, não encontramos onde sentar porque as pessoas não retornaram as bandejas usadas.

Por isso, nesse dia da consciência negra, recomendo que você faça um exame de consciência, lembrando de suas atitudes e pensamentos “escravocratas”, e proponha uma mudança.

Não se justifique, dizendo que esse comportamento mantém o emprego de outras pessoas. É o que desejamos para elas?

Por que não deixar os locais arrumados para os que virão, na expectativa de que alguém faça o serviço e limpe nossa bagunça?

Pense e repense.

 

Referência

DaMatta, Roberto. Imagem do engenheiro na sociedade brasileira. Brasília: SENAI/DN, 2010. 34 p.

http://www.portaldaindustria.com.br/publicacoes/2012/7/imagem-do-engenheiro/