Adoto o pensamento sistêmico como base para a reflexão sobre as organizações de hoje e do futuro. Como consultora, geralmente, opto por uma linguagem subjacente para contemplar os elementos que este tipo de pensamento traz a abordagens mais objetivas e ferramentais exigidas pela minha atuação em empresas tradicionais que precisam aprender a inovar.
Com a crise do coronavirus, a visão sistêmica tornou-se ainda mais relevante. De repente, sistemas antes eficientes baseados em tecnologias dominadas tornaram-se obsoletos em poucos dias. Em movimentos desesperados, alguns clientes que resistiam às soluções digitais passaram a adotá-las rapidamente, ainda que de forma pouco coordenada. Com um novo padrão de consumo, novas agendas de sobrevivência surgiram. Mesmo em um momento de urgência que exige ação rápida, a maioria das medidas empresariais parecem ou erradas ou inúteis. Perdidos, executivos começam a questionar o futuro, mas para isso, precisam buscar outros tipos de conhecimentos para pensarem em medidas mais duradouras, além das contingências.
Neste contexto, a mudança que pensadores e profissionais como eu já propagávamos (e que pareciam ainda especulativas por falta de exemplos mais próximos a cada setor da economia), passa a fazer sentido e se materializa para diversos empresários.
E como as empresas podem se preparar para este mundo novo que podemos vivenciar por uma janela aberta pela COVID-19? Este artigo tem o objetivo de responder esta pergunta conceitualmente a partir do pensamento sistêmico, em especial o elegante (e, portanto, simples) modelo delineado por Peter Senge.
Em seu modelo de iceberg, o autor explica que eventos acontecem em um sistema a partir de padrões de comportamentos que existem a partir de estruturas do próprio sistema e que são formadas por modelos mentais que formam a cultura. O modelo de Senge vai do macro ao micro, do sistema maior (econômico ou organizacional) até o indivíduo.
Com a COVID-19, as estruturas que sustentavam o nosso sistema econômico foram abaladas (pense nas milhares de pessoas que assistiram a live de quarentena da Sandy e Junior sem precisar da Rede Globo). Algumas, eliminadas (pense na quantidade de pessoas que não precisa mais de uma sala de aula para aprender).
Ao mesmo tempo — tanto como causa, quanto como consequência das próprias estruturas — os modelos mentais estão se alterando: indivíduos estão aprendendo novos valores e novas formas de relacionamento e mudando sua percepção de valor. Vozes que soavam baixo ganham coro, agora, por discutirem novos tipos de soluções e abordagens (pense nos grupos colaborativos que se formam durante a crise para solucionarem problemas sociais). Novas conexões se estabelecem trazendo novos aprendizados que terão continuidade no futuro: esta é a base do novo normal.
Mas este novo normal substituirá totalmente o nosso modelo de vida e de negócios anteriores? Acredito que ao responder a esta pergunta, muitas empresas irão errar. Tenho visto cenários de futuro elaborados pelas empresas ainda baseados em paradigmas do passado.
Em primeiro lugar, precisamos assumir que a crise não ‘vai passar’ simplesmente. Medicamentos e vacinas não são criados do dia para a noite, portanto, teremos estágios de evolução que irão da crise mais aguda atual, passando pela retomada parcial da ‘vida com o coronavirus ainda à espreita’ até chegarmos a um ponto no qual o vírus não será mais um risco importante. Isso pode levar de 1 a 2 anos, ou seja, tempo suficiente para mudar a percepção de várias pessoas sobre o nosso modelo de vida e sociedade.
A partir do início do período de transição algumas pessoas voltarão a consumir e a viver em moldes parecidos com os anteriores, mesmo com algumas novas práticas de uso de máscaras e álcool gel para ir ao trabalho ou ao shopping. Isso gerará a falsa impressão de que estaremos no caminho do mesmo padrão de consumo no qual estávamos antes da crise. Isso nos fará falhar em nossas análises.
Sugiro uma pista quando quiser saber se está no caminho correto: se, conforme a crise evoluir, você e sua empresa voltarem a operar com os mesmos processos e propostas de valor que propunham antes da COVID-19, provavelmente, estarão caminhando para o fracasso.
Como citei anteriormente, diversos modelos mentais vão mudar. Em todo o mundo, milhares de pessoas demitidas já despejam conhecimento e capacidades no mercado e, em breve, se tornarão concorrentes de seus antigos empregadores. Comunidades já se organizam de forma virtual e cooperativa para criarem soluções reais. Os conhecimentos de alto nível (científico, social e filosófico) antes pouco valorizados por Wall Streeters e Faria Limers já correm soltos e formam grupos que os propagam e que exigirão novas formas de relacionamento entre empresas e indivíduos.
O ano de 2020 deve ser o ano de maior aprendizado que algumas sociedades tiveram até hoje. Este conhecimento estará nas ruas, em cada funcionário e em cada cliente. É um conhecimento que aproxima as pessoas independentemente das classes sociais, ao mesmo tempo em que separa aquelas que não conseguirem aprender a pensar de forma responsável perante a sociedade e perante cada indivíduo.
Este modelo mental crescerá, desenvolverá novas culturas, novas tribos e potencializará novas estruturas. Algumas delas, inclusive, já existiam antes, mas com menor força, tais como grupos de colaboração para o trabalho (como já acontecia nas comunidades de aprendizado), para a inovação (como nos ecossistemas de startups) e até para a convivência no dia a dia (como comunidades de coexistência).
A partir desses movimentos, a inovação deverá ter mais frentes de origem e se acelerará, aumentando, portanto, a concorrência por profissionais e por mercados. Ao mesmo tempo, a transformação digital que se acelera com a crise ameaçará fortemente alguns modelos de negócios e postos de trabalho tradicionais e criará novas demandas profissionais. Cadeias produtivas serão totalmente revistas e as empresas terão que abraçar as mudanças ou morrer.
O fidigital (união de soluções em meios físico e digital) já é o novo normal. Uma nova “economia da saúde” surgirá trazendo oportunidades e ameaças a diversos setores. Caso não impacte o seu diretamente, você correrá o risco de ficar como o ‘sapo na panela’, sem perceber que o seu ambiente de negócios também já foi alterado. Acredite, chegará a sua vez.
Quando exatamente o seu setor será impactado? Não sei dizer. Na verdade, a previsão desta data não é importante. O que importa é saber que já há, hoje, empresas realizando esta virada. Use a lógica que as finanças corporativas nos ensinam: o valor de um negócio é dado pela expectativa futura de seu fluxo de caixa. E, quando se consegue quantificar a redução nas expectativas, pode ser tarde demais.
Certamente, você já ouviu tudo isso antes. Este discurso existe na Administração há vários anos, mas era de difícil materialização até agora. Profissionais e estudiosos de diversas áreas já explicaram partes — ou até a totalidade — desses movimentos de formas diversas. Será que você e sua empresa entenderão desta vez?
Escrito por
Professora e pesquisadora nas áreas de estratégia e pensamento sistêmico. Professor and researcher: strategy & systems thinking. PhD in Business Administration.